sexta-feira, 20 de julho de 2012


Era uma vez um homem. E esse homem carregava no corpo a densidade de um enorme rio congelado, por isso desconhecia o som do pulsar das artérias, ou o aconchego morno da Primavera. Vivia os dias entorpecido, guardando para si um tesouro secreto: nas suas veias repousava, em tranparência cristalina, um vasto reino de pequenos e grandes peixes. No entanto, quem por ele passava no corre-corre do quotidiano não percebia as estranhas criaturas que o habitavam. Como o homem era gelado por dentro, não conseguia acompanhar o ritmo de quem por ele passava.
Um dia, calhou passar por ele uma mulher que corria muito como os outros, mas que por um estranho motivo decidira parar. Talvez porque, também, ela, possuia uma nascente de água que lhe teimava inundar o peito. Mas, ao contrário do homem, a água fluia-lhe livre pelo corpo, muitas vezes alegre em rodopio, outras vezes em revolta borbulhante.
Por a mulher ter parado, a sua cascata de água derramou sobre as veias geladas do homem, escavando nelas pequenas fendas, que rachavam e se deixavam envolver. Os anos passavam, e a nascente da mulher tinha envolvido por completo o rio congelado que se escondia no homem. O gelo derretera, primeiro aos poucos e depois por completo, diluindo-se na corrente. Ambos partilhavam agora um gigantesco rio, onde cresciam e espreitavam belas criaturas marinhas. Por vezes o rio e as correntes que o formavam insistiam contrariar-se, outras vezes giravam entre si numa prolongada brincadeira.
Com o passar de muitas décadas as águas que corriam dentro do homem e da mulher foram levadas para um terreno árduo com pedragulhos vulcânicos em perigosa instabilidade. A temperatura da água ia subindo, sem que o homem ou a mulher o percebessem, devido à elevada temperatura das rochas. Como consequência as correntes agitavam-se em desesperada desarmonia, chocavam umas nas outras, revoltavam-se. Aos poucos e em triste derrota, davam à costa as criaturas que os habitavam, não sobrevivendo à agitação violenta que fervia e borbulhava naquelas águas. O rio, antes amplo e imponente, era agora um pálido lago que se desvanecia em vapor, dispersando-se pela atmosfera. Não tocando nada, nem ninguém. 




* Ilustração de Shaun Ferguson


2 comentários:

  1. Era uma vez um homem. E esse homem carregava consigo tudo e carregava nada.

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  2. Vim aqui com o propósito primeiro de dar satisfação ao estranho facto de este post(e) ter surgido na minha alimentação (feeds para os gaijos ingleses)

    Segundo, de saber como tem andado o ventrículo esquerdo.

    Terceiro, indagar da razão de bater de modo tão desaqueado ao batimento humano. E ainda bem.

    Quarto, vou dormir que devia estar com sono.

    Quinto, indagar (mais uma vez) sobre o sentido ou não do comentário que me precede

    Sexto, indagar (porque sim) sobre a possibilidade do batimento dos ventrículos serem audíveis pelos humanos

    Não há sétimo nem seguintes. Tal como os seis primeiros não existem. São simples batimentos descompassados de teclas plásticas. Respondem mecanicamente.

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