Era
uma vez um homem. E esse homem carregava no corpo a densidade de um enorme rio
congelado, por isso desconhecia o som do pulsar das artérias, ou o aconchego
morno da Primavera. Vivia os dias entorpecido, guardando para si um tesouro
secreto: nas suas veias repousava, em tranparência cristalina, um vasto reino
de pequenos e grandes peixes. No entanto, quem por ele passava no corre-corre
do quotidiano não percebia as estranhas criaturas que o habitavam. Como o homem
era gelado por dentro, não conseguia acompanhar o ritmo de quem por ele
passava.
Um
dia, calhou passar por ele uma mulher que corria muito como os outros, mas que por
um estranho motivo decidira parar. Talvez porque, também, ela, possuia uma
nascente de água que lhe teimava inundar o peito. Mas, ao contrário do homem, a
água fluia-lhe livre pelo corpo, muitas vezes alegre em rodopio, outras vezes
em revolta borbulhante.
Por
a mulher ter parado, a sua cascata de água derramou sobre as veias geladas do
homem, escavando nelas pequenas fendas, que rachavam e se deixavam envolver. Os
anos passavam, e a nascente da mulher tinha envolvido por completo o rio
congelado que se escondia no homem. O gelo derretera, primeiro aos poucos e
depois por completo, diluindo-se na corrente. Ambos partilhavam agora um
gigantesco rio, onde cresciam e espreitavam belas criaturas marinhas. Por vezes
o rio e as correntes que o formavam insistiam contrariar-se, outras vezes
giravam entre si numa prolongada brincadeira.
Com
o passar de muitas décadas as águas que corriam dentro do homem e da mulher foram
levadas para um terreno árduo com pedragulhos vulcânicos em perigosa
instabilidade. A temperatura da água ia subindo, sem que o homem ou a mulher o
percebessem, devido à elevada temperatura das rochas. Como consequência as
correntes agitavam-se em desesperada desarmonia, chocavam umas nas outras,
revoltavam-se. Aos poucos e em triste derrota, davam à costa as criaturas que
os habitavam, não sobrevivendo à agitação violenta que fervia e borbulhava
naquelas águas. O rio, antes amplo e imponente, era agora um pálido lago que se
desvanecia em vapor, dispersando-se pela atmosfera. Não tocando nada, nem
ninguém.
* Ilustração de Shaun Ferguson
Era uma vez um homem. E esse homem carregava consigo tudo e carregava nada.
ResponderEliminarVim aqui com o propósito primeiro de dar satisfação ao estranho facto de este post(e) ter surgido na minha alimentação (feeds para os gaijos ingleses)
ResponderEliminarSegundo, de saber como tem andado o ventrículo esquerdo.
Terceiro, indagar da razão de bater de modo tão desaqueado ao batimento humano. E ainda bem.
Quarto, vou dormir que devia estar com sono.
Quinto, indagar (mais uma vez) sobre o sentido ou não do comentário que me precede
Sexto, indagar (porque sim) sobre a possibilidade do batimento dos ventrículos serem audíveis pelos humanos
Não há sétimo nem seguintes. Tal como os seis primeiros não existem. São simples batimentos descompassados de teclas plásticas. Respondem mecanicamente.